segunda-feira, 8 de dezembro de 2014

A SÍNTESE KARDEQUIANA


Maurice H. Jones

Segundo o filósofo e pacifista britânico Bertrand Russel, a Filosofia é algo que se situa entre a Teologia e a Ciência. Todo o conhecimento definido pertence à Ciência e todo dogma, pertence à Teologia. Mas, entre a Teologia e a Ciência existe um território de ninguém, onde as nossas reflexões, as nossas idéias, os nossos mais simples pensamentos, transitam sem dificuldades, sem formalismos – esta terra de ninguém é uma terra de todos: é o chão da Filosofia.
O mundo, indaga ele, está dividido em espírito e matéria?  Se assim é, o que é o espírito e o que é a matéria? Quem está sujeito a quem? Será o espírito dotado de alguma independência?  Possui o universo alguma unidade ou propósito e se possui estará ele evoluindo a caminho da sua finalidade? Será que existem mesmo leis da natureza ou acreditamos nelas devido ao nosso amor pela ordem? Existe alguma maneira de viver que seja mais nobre ou menos nobre? Em que consistiria o modo de vida nobre e como realizá-lo?
Evidentemente não encontraremos respostas a estas questões nos laboratórios. Responder a elas é empenho da Filosofia pois, se nem  todas as nossas especulações podem ser respondidas pela Ciência, é também verdade que  as respostas confiantes dos teólogos, aceitas no passado, já não nos convencem mais,  conclui o pensador na suaHistória da Filosofia Ocidental”.
Seria o Espiritismo numa resposta inteligente a estas profundas questões de ordem filosófica? Vários elementos que estruturam o pensamento espírita respondem positivamente a esta indagação e o credenciam como um modo moderno, ventilado e revolucionário de percepção do homem e do mundo, bem como precioso instrumento pedagógico para o autoconhecimento e controle racional da própria evolução. 
O grande problema da ética como estudo racional da moralidade se resume em saber se é desejável ser bom e, em caso afirmativo, como pode ser o homem persuadido a ser bom. A esta intrigante questão o Espiritismo responde com a idéia da evolução e, sobretudo, com os princípios da reencarnação e da causalidade que oferecem substrato racional riquíssimo para a adoção consciente de um modelo comportamental fundamentado na tolerância racial e social, configurando assim a ética natural, sonhada por Sócrates, capaz de construir um sistema de moralidade independente de credos teológicos.
Na visão do filósofo J.Herculano Pires, o Livro dos Espíritos, veículo privilegiado destas ideias inovadoras, mesmo não tendo sido elaborado em linguagem técnica e nem observe as minúcias da exposição filosófica, revela todo um complexo e amplo sistema de filosofia. É, portanto,  o arcabouço filosófico do Espiritismo.
Como se vê, Kardec não foi um filósofo na acepção mais usual do termo, nem exatamente um cientista. Foi, isto sim, e acima de tudo, um extraordinário pedagogo, qualificação essencial para a compreensão e propagação do Espiritismo até os dias atuais.
A precoce percepção de que somente a educação e o amor poderiam encaminhar solução para os problemas sociais e morais do seu tempo fez de kardec  herdeiro natural de uma magnífica linhagem de educadores que começa, no século XVII, com Comenius, o pai da didática moderna, passa, no séc. XVIII, pelo filósofo J.J. Rousseau e seu “Emílio”, terminando  no grande e sábio mestre da educação como ato de amor, J.H. Pestalozzi.  
Como um estuário das correntes de idéias mais generosas e libertárias que irrigaram a cultura da Europa desde a renascença, Kardec chegou à maturidade equipado, moral e intelectualmente, para a grande tarefa de sua vida: a construção de uma síntese conceptual do mundo moderno, a Codificação Espírita, centrada na idéia da evolução e na realidade e primado da vida espiritual.
Esta extraordinária façanha, resultado do trabalho de homens encarnados, assessorados por homens desencarnados, tornou-se possível, no tempo e no espaço, pela feliz conjugação de fatores políticos, sociais, econômicos e culturais aliados à sensibilidade, lucidez e coragem do mestre educador Hippolyte Léon Denizard Rivail cujo bicentenário de nascimento estamos comemorando neste 3 de outubro de 2004.
Segundo muitos historiadores, o Renascimento  e a Reforma Luterana são as duas mais importantes nascentes da história moderna. Uma libertou o espírito e embelezou a vida, oferecendo ao homem o direito à felicidade aqui na terra; a outra estimulou a crença e o senso moral. As idéias contidas no bojo destes movimentos, propagadas pelas facilidades oferecidas pela descoberta de Gutenberg e dinamizadas pela revolução conceptual produzida pela descoberta da América e pela revelação de Copérnico, varreram a Europa a partir do final do Séc. XV e início do Séc. XVI, desencadeando uma  irresistível avalanche de mudanças, crises  e conflitos ideológicos num mundo cansado do repouso medieval e ansioso pela descoberta de novos mundos, novos caminhos, novas idéias.
No Século XVIII o Renascimento cede espaço para o Iluminismo que, tendo razão e liberdade como estandarte, enfrenta a superstição e a opressão, produzindo significativa redução de importância da Igreja e influindo por seus princípios na independência dos Estados Unidos e na Revolução Francesa, fatos que, entre outros, assinalam o colapso da França feudal, uma importante ampliação das liberdades civis e a transição da Idade Moderna para a Contemporânea.
Se acrescentarmos a este sintético painel o crescimento exponencial da população a partir de 1750 em função de avanços na produção agrícola, higiene e medicina e mais a revolução industrial iniciada na Inglaterra provocando intenso deslocamento das populações rurais para as cidades com todo o conjunto de conseqüências sociais, políticas e econômicas, encerraremos o século das luzes já experimentando um certo cansaço da arrogância racionalista e criando espaço para o surgimento do Romantismo que valorizando o sentimento caracteriza o século XIX, o século de Kardec.
O nascimento em 1804 e a formação intelecto-moral  do futuro Codificador do Espiritismo ocorre em plena era de Napoleão que, no mesmo ano é coroado Imperador  e promulga o Código Civil dos Franceses ou “Código de Napoleão”, de importância decisiva no direito ocidental e, conforme o próprio Imperador, sua maior obra.
Kardec era um homem da sua época, cosmopolita, sensível, arguto e naturalmente aberto às influências mais nobres que a história e a experiência lhe ofereciam. Enquanto aprimorava sua formação no Instituto de Pestalozzi em Yverdon e, depois, na vida profissional, como educador, outros acontecimentos ocorriam, com enorme significado e presença na sua futura e máxima obra.
Além dos importantes desdobramentos geopolíticos do período napoleônico, podemos identificar as revolucionárias teorias evolucionistas de Lamark e Darwin de enorme repercussão,  a Filosofia Positivista de Auguste Comte e, até, o Manifesto Comunista de Marx e Engels, produto da agitação social da nova classe operária.
Neste cenário imponente e desafiador, buscava-se afanosamente um novo modelo conceptual para o tempo novo que surgia, pois os paradigmas vigentes haviam esgotado a capacidade de oferecer segurança e identidade.  É então que, já maduro e sensível às inquietações do seu mundo e à convocação do mundo espiritual, Kardec aceita a responsabilidade de liderar o grande esforço para construção de uma nova visão de homem e de mundo, humanista e dinâmica, na qual razão e sentimento pudessem, harmonicamente, buscar a verdade.
E assim, como uma flor tardia da primavera iluminista, nascida no solo adubado pelo romantismo de Rousseau e Pestalozzi, surgiu o Espiritismo que, com seu “humanismo espiritocêntrico”, busca superar, dialeticamente, o conflito entre o pensamento medieval centrado em Deus e o humanismo organocêntrico da renascença e iluminismo. A cosmovisão inovadora e sintética oferecida por Karde ao mundo nascia, robusta e perturbadora, desafiando os paradigmas senis e anunciando, no dizer do físico inglês Oliver Lodge, “uma nova revolução copérnica”.
                                                                                                
                                                                                                       25/09/2004


domingo, 16 de novembro de 2014

APRECIAÇÃO SOBRE O LIVRO: "KARDEC E A REVOLUÇÃO NA FÉ"

Meu caro Jerri:

    Terminei, dias atrás, a leitura de seu excelente "Kardec e a revolução na fé", mas, como estava envolvido no encerramento da edição de novembro do jornal Opinião, só agora encontrei tempo para cumprimentá-lo pelo trabalho. Aliás, no Opinião que deverá sair nos próximos dias, redigi uma nota sobre o livro, recomendando sua leitura. Já adquirimos alguns exemplares para vendê-lo no CCEPA.
    Referi, na nota, que seu trabalho retoma temas que foram preocupações de grandes escritores espíritas brasileiros como Deolindo Amorim e J.Herculano Pires. É ótimo que seja assim, em momento em que a maioria das publicações "espíritas" se distancia da racionalidade filosófica kardequiana, para se dedicar quase que exclusivamente a produções pretensamente mediúnicas de baixa qualidade. Vejo no seu trabalho a retomada de reflexões muito bem postas especialmente por Herculano, mas, também, ouso afirmar que, em alguns aspectos, você supera Herculano Pires, imprimindo ao texto uma linguagem mais amena e com melhor abertura ao livre-pensamento. A fé espírita, para você, diferentemente do autor de "O Espírito e o Tempo", fortalece mais a dúvida filosófica do que algumas "certezas" que Herculano entronizou como definitivas.
    Dentre outras tantas qualidades, seu livro é resultado de uma atenta busca de conteúdos da "Revista Espírita", aquele verdadeiro laboratório de ideias, em cujas páginas Kardec gestou e deu corpo a um gênero de fé perquiridor, liberto do espírito de sistema das religiões e ideologias e aberto, sempre, à progressividade do conhecimento humano.
    Parabéns por seu trabalho. Espero que continue enriquecendo a cultura espírita com outras obras, nessa mesma linha independente e destemida.
    Se isso poderá contribuir com a divulgação de sua obra, você e sua editora estão inteiramente autorizados a divulgar, onde quiserem, a opinião pessoal acima dada. Agora, e apenas para sua reflexão, me permito a seguinte observação:
    Há algum tempo, deixei de utilizar, em meus escritos ou em palestras, expressões como: Jesus Cristo, moral cristã, cristianismo, etc., como ideias afins ao espiritismo.
    Com o desenvolvimento dos estudos que separam a figura mitológica de Jesus Cristo, o deus que se fez homem para salvar a humanidade, e que é a base teológica do "cristianismo", da figura histórica de Jesus de Nazaré, nós, espíritas, devemos contribuir para a melhor compreensão de um e de outro.
    Aliás, quem primeiro atentou para isso, no meio espírita, foi o próprio Herculano Pires, na Introdução de "Revisão do Cristianismo", onde traça em belíssimo texto as diferenças entre Jesus Cristo, o deus cristão, nascido de uma virgem,  e Jesus de Nazaré, o homem apontado pelo Livro dos Espíritos como "modelo e guia da humanidade". Pena que Herculano, apesar disso, tivesse continuado a se referir a "Jesus Cristo" ou "ao Cristo" e insistido nessa ideia do "cristianismo redivivo", etc. que, me parece, são incompatíveis com as ideias modernas e progressistas assumidas pelo espiritismo.
    Penso que quando nos referimos a Jesus como "o Cristo", no espiritismo, estamos reforçando essa ideia salvacionista, do "ungido", "filho unigênito de Deus", enviado à Terra para resgatar o homem do pecado original, ideia central do cristianismo que à fé racional espírita não faz nenhum sentido.
    Bem, estou transmitindo ao amigo uma reflexão que, para nós, da CEPA, hoje, implica num consenso, que fomos construindo ao curso das últimas décadas. Sabemos muito bem que o próprio Kardec se utilizou daquelas expressões e, em alguns momentos, também se valeu de conceitos "cristãos", incompatíveis, hoje, com uma visão progressista e mais racional de espiritismo. Mas, como formamos um movimento à margem, sem compromisso com a terminologia "oficial", para nós fica mais fácil esse trabalho de atualização não apenas de conceitos, mas também de linguagem. Sei - porque já senti isso na carne - que para quem ainda está vinculado ao sistema organizacional espírita, é mais difícil esse tipo de contestação. De qualquer maneira, fica a observação e o desejo, inclusive, de trocarmos ideias a respeito do tema.
    Não se trata, absolutamente, de uma crítica ao seu livro, que guarda inteira fidelidade às ideias e à linguagem de Kardec, mas de um convite a uma reflexão que pode estar abrindo um novo caminho, mais independente, mais livre-pensador, mais moderno, ao espiritismo. Sei que essas ideias nos aproximam muito.

    Um abraço afetuoso.

    Milton Rubens Medran Moreira


quarta-feira, 22 de outubro de 2014

AMO, LOGO EXISTO!

Jerri Almeida


Um dos assuntos, seguramente, mais discutidos e inquietantes do pensamento ocidental, o amor vem alimentando o imaginário humano há milênios. Desde Platão, os filósofos refletem sobre o significado e a abrangência do amor, seus limites e possibilidades em oferecer uma vida boa e virtuosa. Em seu livro O Banquete, Platão apresenta diversos oradores discursando sobre o Amor, ou o que considera: “um discurso em louvor a Eros”.
Entre eles está Sócrates, que usa um mito para explicar o Amor: Eros é descendente de Poros (Riqueza) e de Penia (Pobreza). “Pela influência da natureza que recebeu do pai, Eros dirige a atenção para tudo que é belo e gracioso”. “É capaz de desabrochar e de viver, morrer e ressuscitar no mesmo dia. Come e bebe, dá e se derrama, sem nunca estar rico ou pobre”. Nesse sentido, a questão do Amor não se resume, tão somente, à procura do outro, como afirmou Aristófanes, mas na ânsia de uma realização mais profunda: o desejo de procriação do belo.
Dessa forma, Platão julga que o Amor é um desejo cuja principal função é criar a virtude (e “a mais alta de todas as virtudes é o saber”) através da beleza.  O Amor, portanto, seria toda aspiração ou impulso, em geral, na direção das coisas boas, do bem e da felicidade.
O filósofo alemão Erich Fromm, em seu magnifico livro: A Arte de Amar, afirmava que: “O amor genuíno é uma expressão de produtividade e implica cuidado, respeito, responsabilidade e conhecimento”. Não seria o amor, a própria arte de viver? Mas seria ele incondicional?  Alguns pensadores o associam a sexualidade e ao prazer, outros, às virtudes da alma, outros ainda, como é o caso do filósofo Simon May, o definem como “o enlevo que sentimos por pessoas e coisas que inspiram em nos a esperança de uma fundação indestrutível para nossa vida.”
Estudado em várias áreas do conhecimento, o certo é que o amor ainda é um belo desconhecido. Num mundo em crise de referenciais afirmativos da vida, não seria o amor uma resposta para a humanidade da humanidade? Nesse sentido, como situar a paradoxal afirmativa do “matou por amor”?  Onde a fronteira entre amor e ódio? Como situar o amor no plano das relações familiares, quase sempre permeadas de conflitos?
Dos célebres romances como Romeu e Julieta, Tristão e Isolda, o amor romântico se tornou, para usarmos uma expressão do sociólogo polonês Zymunt Bauman, por demais “líquido”, descartável, numa sociedade profundamente consumista. Seria esse, no entanto, o desfecho trágico do amor no mundo contemporâneo?
A filosofia espírita oferece vários horizontes de reflexão sobre o assunto. Sem restringi-lo, a esse ou aquele aspecto, o espiritismo lança o tema numa nova ordem de fatores, associando-o a Lei Natural da vida e, portanto, ao processo de evolução do espírito. Amar é um imperativo do progresso moral, é o lançar-se na existência abrindo, como bem alertou Herculano Pires, as perspectivas do altruísmo. 

Fonte: O Semeador, outubro de 2014. Editorial (Órgão de divulgação da Sociedade Espírita Amor e Caridade - Osório-RS)

quarta-feira, 3 de setembro de 2014

LANÇAMENTO!

Sinopse

Este livro pretende revisitar o estudo da fé raciocinada. Para isso, parte da crítica de Kardec sobre a fé cega. Quais as raízes da fé dogmática? O que ela vem representando para a humanidade? O medo se camuflou na fé, gerando uma dramática história de submissão a um Deus tirano, que não poupava castigo aos indivíduos. A estrutura filosófica do Espiritismo, e seus pressupostos teóricos, fundamentam o direito de análise e o livre exame, base para a construção de uma fé racional e, portanto, livre dos prejuízos gerados pelas imposições arbitrárias das religiões. 


segunda-feira, 21 de julho de 2014

TRANSFORMAÇÃO SOCIAL

Jerri Almeida
A aspiração por uma sociedade mais justa e feliz, esteve presente em vários momentos na história do pensamento ocidental. O humanista inglês Thomas More, ao escrever seu livro A Utopia, no século XVI, imaginou uma ilha aonde seus habitantes viviam felizes, num sistema social justo e sábio, retomando a ideia da república em Platão. Condorcet, no final do século XVIII, havia escrito nas páginas de seu Tableau, dez etapas para o avanço triunfal da humanidade, rumo à ciência, à sabedoria e à felicidade.  Mais tarde, Victor Hugo, em sua magistral obra: Os Miseráveis, de 1862, escreveu: “Cidadãos, o século XIX é grandioso, mas o século XX será feliz [...]. Não se terá mais a temer a fome e a exploração, [...] a miséria, as batalhas e todas as rapinagens do acaso na floresta dos acontecimentos. Poder-se-ia quase dizer: não haverá mais acontecimentos. Seremos felizes.[...]”. Havia um imaginário, um otimismo literário no tocante aos avanços e promessas de um mundo melhor, trazido pelo desenvolvimento científico.
Atravessamos os portais da história e chegamos ao século XXI, triunfantes na inteligência mas, vivendo os inúmeros dilemas e mutações de um mundo que aspira renovação. O sociólogo polonês Zygmunt Bauman, afirmou que a maneira como a sociedade atual molda seus membros é ditada, acima de tudo, pelo dever de consumir, associado a uma cultura que preconiza o individualismo. Bauman considerou que há uma ressonância natural entre o estímulo para se viver o “agora”, ocasionada pela tecnologia compressora do tempo, e a lógica da economia orientada para o consumidor. [1]
Continuadamente exposto a novas tentações, num estado de constante excitação, o ser humano da sociedade pós-globalizada, vive sua constante insatisfação. Vivem-se ávidos por novas atrações e sensações e, logo que estas são satisfeitas, outras necessidades surgem sedutoras, convidando os indivíduos a um novo consumo.
Apesar dos avançou da biotecnologia e da tecnociência, vivemos confinados ou encarcerados em burgos modernos, diante da necessidade de segurança, posto que a violência atinge, em escala planetária, níveis alarmantes. O consumidor é consumido pela cultura que induz ao individualismo e menospreza o valor da condição humana. Nada, estranho, portanto, que a depressão, a insônia e outras patologias ocupem lugar de destaque no cotidiano de tantas criaturas.
Recentemente, um grupo de pensadores, do Brasil e de outros países, reuniu-se num evento intitulado: “Mutações: A condição humana”[2]. Psicanalistas, filósofos, críticos de arte, sociólogos, analisaram as novas configurações do mundo atual. Algumas conclusões podem ser destacadas: o homem contemporâneo vem perdendo sua imagem, ou seja, nossa civilização vive uma espécie de crise de identidade, mergulhada num vazio, onde concepções políticas,  crenças, ideias, referenciais, que antes pareciam dar sentido a existência, perdem o seu valor.[3]
A sociedade ocidental, vivendo seus impasses mutações e possibilidades, vem atravessando diversos ciclos, notadamente, sob a égide de um pragmatismo materialista. O Ocidente se tornou “cristão”, mas – para usarmos uma expressão de Signates – não se “cristianizou”. Atingimos, nesses tempos de pós-modernidade, o fenômeno da mundialização da comunicação e da hipercomputação, os avanços da biotecnologia, e, mesmo assim, onde está o homem? 
Para Novaes: “[...] estamos na confluência de dois mundos, um que não acabou inteiramente e outro que ainda não começou inteiramente e, por isso, as velhas definições e conceitos tornam-se inoperantes.” [4] Vivemos uma qualificação da técnica e uma desqualificação da sensibilidade. Isso, de certa forma, nos leva a uma ruptura com a ideia de civilização construída sob a égide do estágio hegemônico da técnica, para vislumbrarmos uma ideia de civilização centrada no humano, na sensibilidade e nos sentimentos.
Os mais pessimistas poderão pensar numa “quase-morte do sujeito”, onde a noção de verdade, de esperança, as ideologias, estariam solapadas pela ruptura com um tempo linear, uma vez que se vive no Time is money ou Moneyteísmo.  Tudo é veloz e volátil e a noção de tempo se fixa, exageradamente, no presente. A grande tragédia do homem pós-moderno, é a de ter perdido o endereço de si mesmo. Apesar de tudo, o espírito continua sendo o fundamento da vida! É necessário retomarmos um otimismo espiritual, não utópico, mas fundamentado numa consciência que agrega, solidamente, o saber físico e metafísico, resgatando o papel do sujeito, espírito imortal e pluriexistencial.
O imperativo da vida coloca o sujeito como ser co-criador-criativo. Na prática, o ser se constrói e autoafirma através de processo que envolve, desde a experiência (individual e social), o conhecimento intelectual e os sentimentos. Na medida em que o sujeito perde suas certezas metafísicas, como advertiu Jung, ele termina por mergulhar – e por extensão a própria humanidade – numa crise de identidade consigo mesmo. [1]
Nesse sentido, o processo de transformação social da humanidade, não pode ser desvinculado do processo de evolução espiritual do próprio homem. Quanto mais o sujeito se cerca de elementos sobre sua condição profunda, menos “vazio” vive. Na falta desses elementos, o ser humano (que tenta superar esse vazio) termina preenchendo seu “espaço mental” com conquistas externas, importantes, mas sempre vulneráveis.
Na segunda metade do século XIX, Allan Kardec analisou as três fases do Espiritismo e mencionou, em discurso durante a Viagem Espírita de 1862, que a terceira fase seria a da “transformação social.” Um ano depois, ao publicar na Revista Espírita de 1863[2], escreveria a respeito da influência do pensamento espírita na sociedade humana, identificando, agora, seis períodos pelos quais a Doutrina dos Espíritos passaria:

1.Período da Curiosidade
2.Período Filosófico
3.Período da Luta
4.Período Religioso
5.Período Intermediário
6.Período da Renovação Social

O último período mencionado pelo codificador é o que, nesse momento, nos interessa. Kardec volta a insistir numa “renovação social.” Tema que, obviamente, ele já havia tratado em O Livro dos Espíritos, [3] e retomaria numa análise mais detalhada em A Gênese, onde afirmou: 

A Humanidade tem realizado, até ao presente, incontestáveis progressos. Os homens, com a sua inteligência, chegaram a resultados que jamais haviam alcançado, sob o ponto de vista das ciências, das artes e do bem-estar material. Resta-lhes ainda um imenso progresso a realizar: o de fazerem que entre si reinem a caridade, a fraternidade, a solidariedade, que lhes assegurem o bem-estar moral. Não poderiam consegui-lo nem com as suas crenças, nem com as suas instituições antiquadas, restos de outra idade, boas para certa época, suficientes para um estado transitório, mas que, havendo dado tudo o que comportavam, seriam hoje um entrave. Já não é somente de desenvolver a inteligência o de que os homens necessitam, mas de elevar o sentimento e, para isso, faz-se preciso destruir tudo o que superexcite neles o egoísmo e o orgulho. [4] [Grifos meus]

Allan Kardec reconhece o valor da inteligência, ou da técnica, mas enfatiza a necessidade de “elevar o sentimento”. A noção de sentimento, nesse caso, não implica numa negação do sujeito enquanto ser desejante, mas numa necessária afirmação da sensibilidade, de alguém que consegue perceber o outro, sem ser arrogante. Essa afirmação de Kardec, também, nos leva a pensar sobre a relação entre sentimento-progresso-pensamento, na medida em que o processo de transformação social envolve, de forma determinante, a condição espiritual. Quando os sentimentos nobres iluminam o pensamento, o progresso global supera seus vazios e paradoxos.
Mas também, Kardec ofereceu mais informações sobre o caráter dessa transformação: “Nestes tempos, porém, não se trata de uma mudança parcial, de uma renovação limitada a certa região, ou a um povo, a uma raça. Trata-se de um movimento universal, a operar-se no sentido do progresso moral.”.[5]  A moral é uma questão central dentro dessa ordem de transformações sociais, pois está, também, associada aos sentimentos.
Sabemos que o Espiritismo, no sentido filosófico, compreende a moral enquanto regra de bem proceder. Mas a ideia de moral aqui definida, abarca também o sentido ético, ou seja, essas “regras” devem vir de “dentro” do sujeito. Nesse caso, estamos dizendo que essas regras são “princípios de valores”, conquistados pelo próprio sujeito/espírito.  Portanto, a moral está associada àquilo que podemos chamar de “sentimentos de valor universal”.
Nesse sentido lembremos Léon Denis quando escreveu que: “o estado social não sendo em seu conjunto senão o resultado dos valores individuais, importa antes de tudo de obstinar-nos nessa luta contra nossos defeitos, nossas paixões, nossos interesses egoístas. Enquanto não tivermos vencido o ódio, a inveja, a ignorância, não se poderá estabelecer a paz, a fraternidade, a justiça entre os homens; e a solução dos problemas sociais permanecerá incerta e precária.”[6]
Somos sujeitos da história. Vivemos, é bem verdade, uma crise civilizacional que nos fornecerá novos elementos para retomarmos valores atemporais, esquecidos nas entranhas da pós-modernidade.



[1] BOECHAT, Walter. A Mitopoese da Psique: mito e individuação. Petrópolis-RJ: Vozes, 2008. P. 158-159.
[2] KARDEC, Allan. Revista Espírita – Dezembro/1863 -  Período de Lutas.
[3] Especialmente nas Leis de Progresso, Sociedade e Destruição. Destacamos, entre outras, as questões: 784, 785, 793, 799 e 800.
[4] KARDEC, Allan. A Gênese. Cap. XVIII – São chegados os tempos. Item 5.
[5] KARDEC, Allan. A Gênese. Cap. XVIII – São chegados os tempos. Item 6.
[6] DENIS, Léon. Socialismo e Espiritismo. 2ed. Matão-SP: Casa Editora O Clarim, 1987. P. 66-67.. 




[1] BAUMAN, Zygmunt. Globalização. As consequências humanas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1999. p. 88,89.
[2] O Evento foi realizado no Salão de Atos da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e contou com um ciclo de 10 conferências, entre os dias 11 a 22 de maio de 2009.
[3] Cf. NOVAES, Adauto. As novas configurações do mundo. In. Caderno Cultura. Jornal Zero Hora. Porto Alegre, sábado 16 de maio de 2009. Pág. 2.
[4] Idem. 

domingo, 25 de maio de 2014

O MEDO CAMUFLADO NA FÉ

Jerri Almeida
O historiador francês Jean Delumeau, na introdução de sua magnífica obra: História do medo no ocidente, em um depoimento pessoal[1], conta que quando tinha dez anos, em uma noite de março, um farmacêutico muito amigo de seus pais morrera de forma súbita. A notícia chegou em sua casa e, naquele momento, ele descobriu o soberano poder da morte. Ela atinge pessoas com boa saúde e de qualquer idade. Sentia-se frágil, ameaçado; um medo visceral instalou-se em sua mente. Ficou doente por três meses, durante os quais foi incapaz de ir à escola.
Dois anos depois, seus pais o transferiram para um colégio de orientação religiosa (salesiano). A manhã da primeira sexta-feira de cada mês era consagrada as “litanias da boa morte”, ou seja, os alunos, na faixa dos doze anos, eram reunidos para a leitura de um texto ou de orações que traduziam inquietações sobre a morte, sempre seguidas da frase: “Misericordioso Jesus, tende piedade de nós”. Essa prática, na essência, refletia uma longa tradição da pedagogia religiosa. No centro dessas frases dramáticas, que as crianças regularmente repetiam, estava a ideia da “culpa”, minando suas consciências, vinculada a uma teologia do medo. Jean Delemeau relata que durante todo mês, num período de dois anos que permaneceu nessa escola, o traumatizante conteúdo religioso fortaleceu ainda mais seu medo, não somente pela morte, mas pelo que viria para muitos após ela: o inferno.
Ele não foi o único!
Um sentimento de insegurança, estimulado pelos eventos reais, tais como: guerras, proliferação de doenças (como o caso da peste negra que vitimou milhares de pessoas na Europa do século XIV), das intempéries climáticas e seus efeitos devastadores sobre a agricultura, e o medo teológico, que fortalecia nos indivíduos uma busca por conforto e segurança espiritual, faziam parte do universo dos temores humanos no ocidente cristão.
A necessidade, por sua vez, da religião dominante em conduzir os fiéis pelos caminhos da obediência aos princípios teológicos por ela formulados, encontrava num arcaico sentimento humano, o temor, um importante aliado.
Durante muito tempo da história ocidental, num período de disseminação de certas doenças, ou por ocasião de terremotos ou outros abalos naturais, a população atingida buscava na religião esclarecimento para seus sofrimentos. A explicação religiosa “assegurava que Deus irritado com os pecados de uma população inteira, decidira vingar-se; portanto, convinha apaziguá-lo fazendo penitência.”[2]  O medo de Deus permanecia na mente de tantos sujeitos que viam nas pestes e outros abalos naturais, a “ira divina”. Mas os sinais dessa “cólera divina” podiam vir, também, do céu pela passagem de cometas ou pelos eclipses, que provocavam sentimentos de pânico pela ideia do juízo final ou do fim dos tempos. 
Deus foi transformado, pela ignorância humana, num carrasco ávido por vingança. Havia, no entanto, algumas formas de atenuar essa relação da criatura com o Criador: submissão a Ele, sendo um bom cristão, o que equivale dizer, sendo submisso à Igreja e fazendo penitências regulares.  Todavia, essa ideia da punição divina não é uma exclusividade do pensamento cristão pós-Jesus. Os gregos divinizaram Deimos (o Temor) e Fobos (o Medo, fobia) realizando múltiplos sacrifícios/rituais para harmonizar as relações entre os indivíduos e esses “deuses”. Os romanos possuíam, também sob esse aspecto, divindades correspondentes às gregas: Pallor e Pavor. De origem Arcadiana, Pã (pânico) era uma divindade que, ao cair da noite, espalhava terror entre os  rebanhos e os pastores.
Dessa forma, o pensamento religioso associou os sofrimentos humanos, individuais e coletivos, aos impositivos divinos. Lutero, em sua Exortação à prece contra o turco, redigida em 1541, no momento em que havia a ameaça de invasão dos turcos otomanos sobre a Europa, fez a seguinte indagação: “Se Deus não se vingasse, seria ainda digno de seu augusto nome?” Lutero colocava em discussão, diante de tantas “superstições” e “idolatrias”, a própria “reputação” divina. Ora, ficaria Deus de “braços cruzados” diante de tanta insolência?
No universo do cristianismo pós-Jesus a “vingança” havia se institucionalizado:

A ideia de que a divindade pune os homens culpados é sem dúvida tão velha quanto a civilização. Mas está particularmente presente no discurso religioso do Antigo Testamento. Os homens de Igreja, aguilhoados por acontecimentos trágicos, estiveram mais do que nunca inclinados a isolá-la nos textos sagrados e apresentá-la às multidões inquietas como a explicação última que não se pode colocar em dúvida. De modo que a relação entre crime e castigo divino – já neste mundo – tornou-se uma evidência para a mentalidade ocidental.[3]

O saldo infeliz dessa ideia, construída sob a égide de uma mentalidade infantil, sem deixar de ser tendenciosa e perversa, sobre um Deus que possui os mesmos qualificativos humanos trouxe também reflexos no âmbito da fé.



[1] DELEMEAU, 2009, p. 47-48
[2] Idem, p. 201
[3] Ibidem, p. 335

segunda-feira, 21 de abril de 2014

A FÉ NÃO EXCLUI A DÚVIDA!

Jerri Almeida
A fé não exclui a dúvida! No espiritismo, a dúvida dialoga filosoficamente com a fé. O argumento da “verdade absoluta”, em qualquer área do conhecimento, é um “erro absoluto”. No exercício intelectual, na busca do conhecimento e da construção da fé, não se deve desconsiderar os limites naturais de cada um, e a possibilidade de autoengano. Certezas e dúvidas fazem parte desse percurso!
Léon Denis, em sua análise sobre o assunto, adverte: “Ninguém adquire essa fé sem ter passado pelas tribulações da dúvida, sem ter padecido as angústias (...). Muitos param em esmorecida indecisão e flutuam longo tempo entre opostas correntezas.”[1] 
A dúvida pode ser um instrumento, como foi para Descartes na filosofia, capaz de conduzir para a análise e rejeição de certas opiniões ou conhecimentos instituídos pelas tradições. A dúvida parte de uma incerteza sobre determinado assunto. Se esse assunto diz respeito às questões religiosas e existenciais, então, essa “dúvida” poderá carregar certas angústias.
Nesse caso, poderá ser considerada uma “dúvida natural”, quando vem acompanhando o indivíduo em sua caminhada existencial, ou uma “dúvida despertada”, quando gerada por uma situação externa. Por exemplo, o defrontar-se com a morte de uma pessoa querida, poderá despertar no sujeito dúvidas sobre a existência de Deus e o sentido da vida. O evento “morte”, por vezes gerador de “angústias”, torna-se capaz e desencadear dúvidas.
Dúvidas e angústias poderão motivar um processo de busca por respostas mais consistentes. Nessa jornada pessoal, percorrerá o sujeito inúmeras possibilidades explicativas, sintonizando-se com aquela que melhor apaziguar suas angústias.
Sócrates, há seu tempo, interrogando o oráculo de Delfos, parte da dúvida para alcançar,  através do questionamento, a certeza e a verdade. Quando se duvida, portanto, é para se conhecer com mais elevado grau de certeza. Certezas administram melhor as angústias! Mas nem sempre podemos ter certezas de tudo!
O desgosto da vida gera uma enorme angústia no indivíduo. Em situações extremas, conduz ao suicídio. O suicídio é, portanto, uma tentativa de fuga, frustrada, das angústias e incertezas da alma. Kardec indagou[2] os espíritos: De onde nasce o desgosto da vida que se apodera de certos indivíduos?  Resposta direta: Da ociosidade, da falta de fé e da saciedade.
A “falta de fé” produz na alma uma espécie de desencantamento consigo e com o mundo! O indivíduo vê a vida acinzentada, sem sonhos, sem esperanças, sem ideais. Uma tormenta qualquer se abateu sobre a vida de alguém, desmanchando certezas construídas sobre areia de praia. A fé, diante da impossibilidade de superação das dificuldades no presente imediato, estimula o reerguimento do sujeito, dando-lhe coragem, determinação, confiança e esperança para prosseguir sua jornada pelas veredas da vida.





[1] DENIS, Léon. Depois da Morte. Fé, esperança, consolações. p. 258
[2] KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos, questão 943.

sábado, 29 de março de 2014

O ESTUDO ESPÍRITA

Jerri Almeida

Nos anos 50, o escritor e sociólogo Deolindo Amorim defendia um estudo integrado e aprofundado das obras de Kardec. Passou o tempo, chegamos ao século XXI, mas o Espiritismo continua sendo uma doutrina pouco compreendida na sua essência. O pensamento de Kardec ainda é muito desconhecido, mesmo no meio espírita. Suas obras são estudadas (quando são) de forma superficial e fragmentadas. O próprio professor Rivail já alertava na Revista Espírita de novembro de 1864: “Está provado que o Espiritismo é mais entravado pelos que o compreendem mal do que pelos que não o compreendem absolutamente, e, mesmo, pelos inimigos declarados.”
Em pouco tempo, se os espíritas não se voltarem para o estudo da ampla obra kardequiana, o Movimento Espírita, de “espírita”, só terá o nome. Observamos com certa preocupação, em certos encontros, “preces em círculo”, ou “de mãos dadas”, entre outras posturas incoerentes com os ensinamentos espíritas que, infelizmente, se proliferam. Voltar-se para a fonte primária, buscando absorver dela, em primeiro plano, o que é realmente o Espiritismo, eis o desafio do momento.
Léon Denis, em seus escritos chegou advertir: “O espiritismo será o que dele fizerem os homens”. Com sua lucidez habitual, o filósofo percebia, desde sua época, o descompromisso de muitos “espíritas” com o estudo sério, nos moldes apresentados por Allan Kardec, com senso crítico e analítico dos textos e dos fenômenos.
Em seu livro O Que é o Espiritismo, no terceiro diálogo, Kardec aconselha o estudo da teoria espírita, indicando suas publicações como roteiro para a compreensão dos princípios fundamentais do Espiritismo. Vejamos:

“Dissemos que o melhor meio de se esclarecerem sobre o Espiritismo é estudarem previamente a teoria; os fatos virão depois, naturalmente, e serão facilmente compreendidos, qualquer que seja a ordem em que as circunstâncias os façam vir. As nossas publicações são feitas no intuito de favorecer esse estudo; eis aqui a ordem que aconselhamos. A primeira leitura a fazer-se é a deste resumo, que apresenta o conjunto e os pontos mais salientes da ciência; com isso, pois, já se pode fazer dela uma ideia e ficar-se convencido de que, no fundo, existe algo de sério. Nesta rápida exposição esforçamo-nos por indicar os pontos sobre que particularmente se deve fixar a atenção do observador.  A ignorância dos princípios fundamentais é a causa das falsas apreciações da maioria daqueles que querem julgar o que não compreendem, ou que se baseiam em ideias preconcebidas. Se desta leitura nascer o desejo de continuar, deve-se ler O Livro dos Espíritos, onde os princípios da doutrina estão completamente desenvolvidos; depois, O Livro dos Médiuns, para a parte experimental, destinado a servir de guia aos que desejarem operar por si mesmos, como aos que quiserem bem compreender os fenômenos. Vêm depois as diversas obras onde são desenvolvidas as aplicações e as consequências da doutrina, como: O Evangelho segundo o Espiritismo, O Céu e o Inferno segundo o Espiritismo, etc.”  

Havia uma nítida preocupação de Kardec com o estudo e compreensão da doutrina espírita. Ele, como bom pedagogo, oferece uma alternativa para isso, pois afirmava que a ignorância dos princípios fundamentais é a causa das falsas apreciações e das práticas incoerentes.

Estudar Kardec de forma integrada e problematizada é um caminho para resgatarmos o pensamento espírita, em suas bases mais sólidas. 

sábado, 1 de março de 2014

PENSAMENTO ALARGADO

Jerri Almeida

Na Revista Espírita de janeiro de 1858, Kardec publicou a emocionante narrativa da mãe que havia perdido uma filha de catorze anos. Essa jovem havia sucumbido a uma longa e dolorosa doença. Inconsolável com essa perda, dia a dia a mãe via sua saúde fragilizar-se, alimentando diante de suas angústias e desgosto pela vida, ideias de suicídio. Instruída sobre a vida espiritual e a possibilidade de comunicação com sua filha, encontrou em uma reunião doméstica, através de uma senhora médium, o reencontro com sua amada filha.
Mas, seria mesmo sua filha?

- És tu mesma, minha filha, que me respondes?  Como posso saber que és tu?

A resposta veio rápida:

-Lili

Era um pequeno apelido familiar dado à jovem em sua infância, mas que não era de conhecimento da médium, considerando-se que há vários anos, só a chamavam pelo seu nome: Júlia.

Qual a mãe que não conhece realmente seu filho? Esse e outros dados foram trazidos pela jovem, eram os sinais, a identidade era evidente. Não podendo dominar a emoção, a mãe explode em lágrimas!

- Mãe! Por que te afliges? Sou feliz, bem feliz: não sofro mais e te vejo sempre.

O diálogo e o relato prosseguem! Kardec faz sua observação:

Em presença de semelhantes fatos, quem ousaria falar do vazio do túmulo, quando a vida futura se nos revela assim tão palpável? Essa mãe, minada pelo desgosto, experimenta hoje uma felicidade inefável em poder conversar com a filha; não há mais separação entre elas; suas almas se confundem e se expandem no seio uma da outra, pela permuta de seus pensamentos.


O sofrimento é inerente ao viver! A experiência humana é inquietante, por vezes, mergulhada em angústias dos mais variados matizes. Viver sem significado, é como o indivíduo que tenta buscar todas as explicações estudando somente a folha, ignorando por completo a árvore. A existência material é, metaforicamente, a “folha”. A vida, na perspectiva espiritual, a árvore. Olhar apenas a folha é angustiante. É uma busca melancólica, torturante, Indiferente e fria. Como compreender os processos químicos que ocorrem na folha, sem temos a sapiência de estudarmos a árvore que a originou? 
Os críticos do espiritualismo asseveram que o homem criou a metafísica para digerir melhor a ideia de sua própria finitude. Os que assim se manifestam, imaginam reter a verdade em suas crenças filosóficas ou científicas, também limitadas pela condição humana.
Viver com vida, com confiança nas disposições humanas e numa ordem que pensou inteligentemente a natureza, pode ser uma perspectiva para se viver esperançosamente. Kardec ofereceu uma lente de reflexão, para pautarmos nosso olhar. O desgosto pela vida poderá, assim, simbolizar ou representar, uma fragilidade do olhar.
A condição humana é um constante conviver com “espaços vazios”, ou seja, com interrogações e dúvidas inerentes a incompletude relativa do homem, em busca da perfectibilidade relativa do espírito. Sendo a existência, como defendem alguns, algo de incerto e inseguro, sem garantias de sucesso, a fé é uma possibilidade radical, para a manutenção dos sonhos possíveis. 

De fato, o espiritismo não afasta o sujeito da existência, nem mesmo a critica. Entretanto, percebe a vida numa perspectiva de serenidade, com todos os seus desafios, na sua estrutura vivencial e reencarnatória. O ser humano se completa na existência e se plenifica na vida. Essa vida, quanto mais rica de significados, mais complexa se torna, no sentido de permitir um olhar para diferentes possibilidades. Uma espécie de pensamento alargado. 

quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

ID, EGO E SUPEREGO EM TEMPOS DE CARNAVAL


Crônica de Moacyr Scliar (Jornal Zero Hora, 08/02/97)

“A nossa mente é como uma casa em que vivem três habitantes. No térreo, mora um sujeito meio atucanado chamado Ego. Ele não é propriamente o dono da casa, mas cabe-lhe pagar a luz, a água, o IPTU, além de varrer o chão, lavar a roupa e cozinhar. Como essas tarefas fazem parte da vida cotidiana, Ego até que não se queixa. O pior é ter que conviver com os dois outros moradores.
O andar superior é decorado em estilo austero, com estátuas de grandes vultos da humanidade e prateleiras cheias de livros sobre leis e moral. Aí vive um irascível senhor chamado Superego que dedica todos os seus esforços a uma única coisa: controlar o pobre Ego. Quando Ego se lembra de uma boa piada e ri, ou atreve-se a cantar um sambinha, Superego bate no chão com o cetro que carrega sempre, exigindo silêncio. Se Ego resolve trazer para casa uma namorada ou mesmo uns amigos, Superego, de sua janela, adverte que não quer festinhas em domicílio.
No porão sujíssimo, mora o terceiro habitante da casa, um troglodita conhecido como Id, que não tem modos, não tem cultura, na verdade, mal sabe falar. Em matéria de sexo, porém, tem um apetite invejável. Superego, que detesta essas coisas, exige que Ego mantenha a inconveniente criatura sempre presa. É o que acontece durante todo o ano.
No carnaval, contudo, Id se solta. Arromba o portão do porão e vai para a folia, arrastando o perplexo Ego, que num primeiro momento, resiste, mas depois acaba aderindo. E aí são três dias de samba, bebidas, mulheres.
Quando volta pra casa na quarta-feira, a primeira pessoa que Ego vê é o Superego, olhando-o fixo da janela do andar superior. Ego sabe que errou e, humilde, enfia-se em casa, abre a porta do porão para que o saciado Id volte ao seu reduto, e aí começa a penitência, que durará exatamente um ano.

De vez em quando Ego tem um sonho. Imagina que os três fazem parte de um mesmo bloco carnavalesco e que juntos, se divertem a valer. O Superego é inclusive, o folião mais animado. Mas isso, naturalmente, é apenas um sonho.”

sábado, 1 de fevereiro de 2014

LEITURA E POSSIBILIDADES

De forma muito evidente, Goulemot explica que: “Ler é dar um sentido de conjunto, uma globalização e uma articulação aos sentidos produzidos pelas sequencias.”[1] Ler é constituir sobre o texto, um sentido não fragmentado, mas de conjunto. A situação de leitura busca oferecer ao leitor, na interação com o texto, não um simples sentido das palavras ou do grupamento de frases, mas o mergulho mais profundo no oceano das “ideias”.
O ato de ler implica numa série de variáveis importantes, auto evidentes. Roland Barthes espantou os professores em um congresso na França, ao declarar que lia com maior frequência e aproveitamento no banheiro. Certamente com esse exemplo, ponderava que o ato da leitura implica também numa relação ou atitude com o meio: ler em pé, sentado, em grupo, solitário, em público, à luz de um abajur, num ambiente em condições climáticas adversas, influencia a disposição pessoal no ato de ler.
No aspecto psicológico, as condições emocionais, espirituais, religiosas e culturais, em casos mais ou menos extremos, irão reverberar sobre o indivíduo no momento de sua interação com o texto, podendo constituir fatores de aproximação ou distanciamento de sentido. Assim, ideias cristalizadas sobre um determinado assunto, preconceitos, valores edificados sobre algo, fatores midiáticos, ideológicos, políticos, atavismos religiosos, entre outros, participarão, com maior ou menor intensidade, na interação com o texto e na produção pessoal de sentidos sobre ele.
A cada leitura, o que já foi lido muda de sentido, podendo aprimorar seu significado. Logo, ler é “estar aberto” constantemente para novas possibilidades.
Nos grupos de estudos do espiritismo, a leitura deixa de ser simplesmente um ato privado, íntimo e particular, para se conjugar com outras leituras e se socializar determinados “sentidos”. Passa a ter o caráter de um “deciframento” coletivo que, por vezes, ultrapassa a percepção individual de leitura. É um grupo que “interroga” um mesmo ou vários textos, buscando articular um (ou vários) sentidos sobre ele ou eles.
Todavia, o abrir-se para os textos, ao longo dos estudos em grupo, não deve gerar uma preocupação radical com a uniformidade dos sentidos, ou necessariamente adequar-se a compreensão que comumente a maioria do grupo construiu.
Essa leitura convergente, seguida de debates, permite de certa forma, uma autoanalise sobre os sentidos (individuais) atribuídos ao texto, conforme menciona o sociólogo Pierre Bourdieu: “Se é verdade que o que eu digo da leitura é produto das circunstancias nas quais tenho sido produzido enquanto leitor, o fato de tomar consciência disso é talvez a única chance de escapar ao efeito dessas circunstancias.”[2]
A leitura, e o consequente estudo, da obra kardequiana é um constante convite para se escapar ao efeito dessas circunstancias, na medida em que estimula a construção de novos significados, mexendo com velhas estruturas de pensamento. Dessa forma, a leitura é um processo inquietante, mas não necessariamente, angustiante. Aproximar-se da leitura e experimentar sua presença constante ao longo dos estudos espíritas, eis o primeiro convite, pois o segundo consiste no processo de interpretação dos textos, assunto que discutiremos na sequencia.
Deve-se, portanto, perceber que no processo da leitura é fundamental articular os vários sentidos produzidos pelo texto, socializando-os dialeticamente nas reuniões de estudo para reconfigurar, ou não, o teor desses sentidos. Um dos primeiros desafios a ser superado pelo leitor é a ideia de “sacralização do texto”. Nenhum texto, no espiritismo, é sagrado, isto é, nenhum texto ou autor, está acima de qualquer análise. O leitor deve se revestir dessa tranquilidade, para interagir com o texto com naturalidade e senso crítico.  
Qualquer texto (e autor) que entre para “a ordem do sagrado” afasta o leitor dos pressupostos das análises e das trocas intelectuais horizontalizadas. Isso pelo fato do conteúdo do texto ser entendido de forma verticalizada, pelo viés da revelação.  O que sempre representa uma manifestação do poder totalitário e dogmático.
Após sua Viagem de 1862, Kardec entusiasticamente percebendo a multiplicação de grupos de estudos, anotou:
Neles ocupam-se pouco ou nada das manifestações. Toda a atenção se volta para a leitura e explicação de ‘O Livro dos Espíritos’, ‘O Livro dos Médiuns’, e de artigos da ‘Revista Espírita’. (...) Aplaudimos de todo o coração essa iniciativa que, esperamos, terá imitadores e não poderá, em se desenvolvendo, deixar de produzir os melhores resultados. (Grifos meus)

A atenção se voltava para a “leitura” e “explicação”, em grupo, de alguns textos publicados por ele até aquele ano. Aqui já percebemos uma prática inicial de estudo, ao que tudo indica, integrando vários textos de Kardec. Mas não se trata de uma simples leitura, mas de uma leitura seguida de explicações que conduzem para a compreensão. A afirmação é do próprio professor Rivail: “Um (...) sinal característico dessa época é o número incalculável de adeptos que nada viram e que, nem por isso, deixam de serem menos fervorosos, simplesmente porque leram e compreenderam.”[3]
Durante os estudos é natural que surjam objeções e dúvidas sobre o conjunto ou partes da teoria, sobre aspectos pertinentes a determinado tema, confrontação de textos de outros autores com os de Kardec e dos espíritos, o que deve estimular o estudante a encontrar respostas através da própria leitura.[4]  Ler bem é tornar-se apto para perceber as “dobras do texto”, tema que está associado a questão da interpretação. No entanto, desejamos ponderar que para “ler bem” não se faz necessário grandes habilidades linguísticas, mas o comprometimento com a compreensão do espiritismo.


NOTAS

[1] GOULEMOT, Jean Marie.  Da leitura como produção de sentidos. In. CHARTIER, Roger. (Org) Práticas da Leitura. Trad. Cristiane Nascimento. 5ª. Ed. São Paulo: Estação Liberdade, 2011. p.108.
[2] BOURDIEU, Pierre. A leitura uma prática cultural. In. CHARTIER, Roger. (Org) Práticas da Leitura. Trad. Cristiane Nascimento. 5ª. Ed. São Paulo: Estação Liberdade, 2011. p. 234.
[3] KARDEC, Allan. Viagem Espírita de 1862. Impressões Gerais. Ed. Feb, p.11.
[4] Idem, p. 14.

Pesquise no Blog

Loading

TEXTOS/ARTIGOS ANTERIORES